Melhor do que o termo
Concílio fica o termo Conferência, pois não se trata da reunião de muitas
igrejas, mas somente de duas, a de Antioquia e a de Jerusalém.
Lc coloca esta narração no centro do livro para lhe dar destaque e importância.
A conferência estabelece a unidade entre a igreja Antioquia e a de Jerusalém. A
conferência dá
legitimidade e continuidade a Paulo. Ele continua a história de Israel, de
Jesus e dos Doze. Paulo não fundou nova religião.
O capítulo 15 é todo de Lc. Ele descreve admiravelmente, porém, 30 ou 40 anos
depois. O discurso de Pedro reflete a prática das comunidades lucanas, mas faz
concessão aos judeu-cristãos (15,19.29).
O texto apresenta problemas:
a) Problemas históricos: há divergências históricas entre At 15 e Gl 1,16-2,14.
Porém há mais convergências do que divergência. Estas últimas são relativas.
B) Problemas de conteúdo: Gl 2,10 diz que os apóstolos pediram que Paulo se
lembrasse dos pobres. At 15 não fala disso. O decreto apostólico (At 15,20.29)
faz exigências, mas Paulo (Gl 2,6) diz explicitamente que os notáveis nada
acrescentaram.
Lc escreveu tarde, introduziu 15,20.29 que ele colheu alhures. Não fazia parte
do original. Certamente acréscimo da ala judaizante que não podia assimilar a
conferência na prática. O decreto apostólico (15,20.29) não tinha razão de ser
no tempo da conferência. Este problema da mesa comum não existia em Jerusalém.
O problema era a circuncisão. Jerusalém podia admitir à distância que não mais
se circuncidasse, mas com o passar do tempo, quando em sua própria comunidade
surgiam incircuncisos, aí a questão da mesa se acendeu.
Nasceu então o decreto apostólico, que foi acrescentado à conferência. Lc o
recebeu assim.
Talvez o choque de Antioquia (Gl 2,11-14) explique algo.
O decreto apostólico era coisa recente. A igreja de Jerusalém o inseriu em At
15, tendo à frente Tiago. Estando Pedro em Antioquia, manda Tiago seus emissários
para receber
o apoio de Pedro. Pedro, diante da pressão aceitou tal decreto. Paulo não
aceitou o mesmo. Provavelmente Paulo é derrotado, e, para amainar o problema, o
decreto entrou na igreja de Antioquia.
Com esta tese também se poderia explicar a questão com Barnabé (At 15,39-40).
Valeria a pena brigar por Marcos?
Parece que o problema é outro (Gl 2,13). Barnabé aceita o decreto apostólico
que Paulo rejeitou. Isto provocou a separação dos dois. Barnabé desaparece do
cenário, pois um judaizante não faz sucesso missionário.
Nos tempos de Lc este problema devia estar superado (At 10), por isto Lc nem se
refere à briga apostólica. Aliás, Lc não quer apresentar um Pedro inconveniente
às suas comunidades.
3. Mulher, casa e família
Na cultura do século I d.C., a mulher não podia participar da vida pública. A
sua função restringia-se à vida familiar, onde exercia sua influência, na
organização interna da casa (oikia). Como funcionava no interior das casas, a
mulher tinha um papel eclesial ativo. A criação de “Igrejas domésticas”
possibilitou maior influência e participação da mulher. Desde as origens até
hoje, as mulheres chegam para ficar. Mesmo sem serem notadas, sem serem
contadas, muitas vezes silenciadas, as mulheres são atuantes nas comunidades. É
preciso vasculhar os textos, perceber sua presença e descobri-las atuantes,
ontem e hoje.
Os textos bíblicos falam pouco das mulheres, quem sabe, por ser tão evidente a
participação delas no dia-a-dia das comunidades. A herança desse primeiro
século foi desviada de nós pela corrente que prevaleceu na história — a que
“unificou” o cristianismo, considerando-o “ortodoxo”, e descartou a influência
e a liderança das mulheres, excluindo-as da plena participação nos ministérios
da Igreja.
Lucas menciona diversas mulheres nos Atos dos Apóstolos. Elas animam e lideram
comunidades, cheias da força do Espírito Santo. Além de Maria, a mãe de Jesus,
Safira foi a primeira mulher citada como membro efetivo e participante nas
decisões da comunidade. Ela se solidarizou com a comunidade ao consentir em
vender seus bens e colocá-los a serviço da comunidade. Lucas ressalta que o
pecado de Safira não foi o mesmo do seu marido Ananias. Safira pecou pelo fato
de não ter reagido em público, na assembléia, ao sistema que regia o casamento
patriarcal, segundo o qual era muito difícil a mulher agir de modo diferente do
modo do marido. Safira acabou sendo conivente e co-autora da traição feita à
comunidade e conseqüente traição ao Espírito Santo.
No tradicional texto da instituição da diaconia, nos Atos dos Apóstolos (At
6,1-7), viúvas helenistas, pobres e estrangeiras, aparecem reagindo contra a
discriminação (At 6,1s). Lucas não diz que todas as viúvas estavam sendo
relegadas na assistência social, mas apenas as viúvas de origem grega. Foi com
base no clamor delas que a comunidade se abriu para os helenistas, com a
diaconia sendo exercida por homens escolhidos em uma assembléia geral, todos do
meio dos excluídos. Com esse relato, Lucas enraizou as comunidades na rica
experiência da libertação do Egito, em que mulheres parteiras uniram-se,
organizaram-se, rebelaram-se contra um decreto lei que visava controlar a
natalidade, e acabaram contribuindo decisivamente para o nascimento de Moisés,
abrindo assim o caminho para o processo de libertação que emergia entre os
escravos hebreus no Império Egípcio.
Outra mulher que exerceu liderança libertadora nas primeiras comunidades
cristãs foi Tabita. Ela é apresentada como discípula atuante na comunidade (At
9,36-43). “Notável pelas boas obras e esmolas que fazia”, efetivou a inclusão
de viúvas pobres e estrangeiras na comunidade, trabalhando manualmente (tecendo
túnicas e mantos). Semelhante ao apóstolo Paulo, Tabita questionou, na prática,
a cultura helenística que desvalorizava o trabalho manual.
Maria, a mãe de João Marcos, descrita em At 12,12-17, aparece como ponto de
referência para a reunião da comunidade. Abrir a casa para reunião de pessoas
ligadas a um movimento que questionava radicalmente o Império Romano e a
cultura helenística poderia desencadear perseguição. Dar guarida a presos
políticos, como o apóstolo Pedro, poderia atiçar ainda mais a ira do império e
seus sustentadores. A mãe de João Marcos aparece assim como pessoa corajosa que
assumiu a responsabilidade do seu compromisso no seguimento de Jesus.
A escrava Rode, citada nominalmente em At 12,12-17, movimentava-se com toda
liberdade e participava intensamente dos acontecimentos da comunidade,
especificamente do episódio da libertação de Pedro. Ela reconheceu Pedro, de
longe, ecoando assim a postura sensível do Pai do filho pródigo. Rode foi a
primeira a anunciar a libertação de Pedro, assim como Maria Madalena foi a
primeira a anunciar a ressurreição de Jesus. Estaria Lucas querendo insinuar
que a escrava Rode tinha a mesma dignidade de Maria Madalena?
Lucas nos fala de Lídia (At 16,13-15.40), uma líder de comunidade. Ela era
comerciante de púrpura e liderava um grupo de mulheres trabalhadoras que
produzia um tipo de tinta com base na mistura da planta chamada púrpura com urina
de animais. Tingiam lãs e roupas e as vendiam. Lídia colocou sua casa à
disposição dos missionários, em um sinal de conversão, insistindo para que
fossem seus hóspedes.
Lucas enfatiza a presença de uma jovem escrava que fez um contundente anúncio
profético: “Paulo, Silas e demais companheiros são servos do Deus Altíssimo e
anunciam a todos vocês o caminho da salvação” (At 16,16-18). Aquela jovem
escrava captou que Paulo, Silas e companheiros eram enviados de Deus para
prestarem um serviço à comunidade de Filipos: apresentar a proposta do
evangelho de Jesus. A jovem escrava clamou também por socorro, revelando seu
desejo ardente de ser libertada.
Priscila, uma trabalhadora missionária, ocupa um espaço relevante nos Atos dos
Apóstolos (At 18,18.26-27). Ela aparece sempre ao lado do seu companheiro
Áquila e, provavelmente, aderiu à fé cristã antes de conhecer Paulo. Deve ter
sido expulsa de Roma pelo edito do imperador Cláudio, em 49 E.C. Como exilada
política, Priscila chegou em Corinto, onde acolheu o apóstolo Paulo em sua casa
por um ano e meio. A casa de Priscila se tornou uma “igreja” cristã. Tanto
Lucas como o apóstolo Paulo colocam o nome de Priscila sempre antes do nome do
seu marido, Áquila. Isso pode indicar sua liderança. Priscila conciliava com destreza
o trabalho do lar com o trabalho missionário e a fabricação de tendas.
Lucas se refere, em Atos, de passagem, às quatro filhas de Filipe, dizendo que
eram profetisas. Em At 13,1 e 11,27 temos notícia da existência de profetas nas
primeiras comunidades cristãs, mas somente em At 21,9 se faz menção à profecia
exercida por mulheres. O fato de o cristianismo ter sido, no início, a religião
das casas, facilitou a atuação das mulheres nas Igrejas. Lamentavelmente com a
institucionalização e a conseqüente hierarquização das Igrejas as mulheres
foram sendo marginalizadas.
A teologia lucana ajuda na superação da discriminação das mulheres nas Igrejas.
“Urge superar todos os dualismos. A começar pelos dualismos entre as próprias
mulheres: judias versus cristãs; ativas versus contemplativas; protestantes
versus católicas; leigas versus religiosas; do lar versus profissionais;
casadas versus solteiras; heterossexuais versus lésbicas.
Comunidades lucanas revelam um contexto patriarcal e machista. As mulheres, de
uma forma geral, eram desprezadas e marginalizadas na sociedade. Mas no
Evangelho “de” Lucas, Jesus dá atenção à mulher, valoriza sua presença e
atuação na comunidade. “Na narração do nascimento de João Batista e de Jesus
(Lc 1,5–2,52) rompe-se o padrão que colocava o homem em primeiro plano e que
deixava à margem tanto a mulher como a criança. Nessas narrativas, as crianças
são apresentadas junto com a presença atuante de suas mães. Elas é que são
protagonistas da novidade, anunciadoras das “grandes coisas que o Poderoso fez”
(Lc 1,49), mesmo vivendo em um contexto patriarcal e machista.
Concluindo nosso trabalho
Na Conclusão dos Atos dos Apóstolos vemos que Paulo é testemunha até os confins
da Terra ( 28,16-31 cf. 1,8).
Conclusão da obra de Lc (v 16,31). Assim como Jesus (Lc 4,16-30) apresenta o
evangelho aos judeus, mas privilegia os pagãos, assim também Paulo anuncia aos
judeus, mas acaba indo aos gentios.
“O grande problema de Lc foi explicar como a Igreja, que doravante toma apoio
cada vez mais os convertidos dos gentios, constitui a continuação do povo de
Israel”.
Depois de Lc, o conceito de igreja pode nascer.
“Na época de Lc os judeus excomungam os cristãos. Trata-se de mostrar que,
apesar desta rejeição, o verdadeiro Israel são os cristãos”.
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